Por Marcílio Amorim
Quantos teatros cabem em um festival? Drama, comédia, infantil, musical, no palco, na rua... O Festival Agosto de Teatro mexeu com os sentidos da classe artística potiguar. Os doze espetáculos do RN e os seis convidados de outros estados nos ofereceram um cardápio pra lá de diversificado, espetáculos vigorosos, uma tendência para o encenação centrada no ator e a necessidade de alguns grupos teatrais repensarem a sua postura estética diante de tudo que vivemos no mundo de hoje.
Uma das funções de um festival é formar opinião e senso crítico. Peço permissão a vocês leitores, ao Festival Agosto de Teatro e aos grupos participantes para exercitar a minha opinião formada nesses oito dias de maratona teatral. Lembrando que me considero leigo no assunto e o que se segue nada mais se trata do que uma opinião.
O teatro apresentado no Festival Agosto de Teatro é jovem e cheio de vitalidade. Estamos num momento de efervescência e bem diferente da fase entre o final da década de 90 e início dos anos 2000, que dizimou uma penca de grupos teatrais. Grupos expressivos para a cena como o Tambor, Ditirambo, Stabanada Cia. De Teatro, Trampo da Trupe, Do Riso ao Pranto, entre muitos outros, deixaram de existir ou estão inoperantes até hoje. Fazer teatro naquela época era roubada! Não dava dinheiro, ninguém ia assistir, patrocínio era lenda e o governo não estava nem aí! Perdemos grandes atores para a advocacia, a engenharia, a arquitetura ou para a vida de dona-de-casa. Eu fui vítima de tais problemas e deixei de me envolver em processos de teatro por ter que trabalhar e estudar.
Também teve uma época que o teatro potiguar pendia para a única vertente do que a professora Clotilde Tavares chama de “Teatro Medieval-Mambembe-Nordestino”. A impressão era que todo mundo estava montando o mesmo espetáculo, com a mesma estética. Kilos de pancake branco na cara, uns instrumentos tocando cantigas de domínio público, um baú e muitas fitas coloridas. Não se experimentava nada diferente.
Hoje o teatro potiguar tem diversidade. Existe uma galera muito jovem e muito forte lutando para impor suas idéias. Ao mesmo tempo as outras gerações mostraram que continuam em boa forma. Por essas e por outras o Festival Agosto de Teatro recuperou a minha fé no teatro potiguar. Não que eu a tivesse perdido, mas me sinto um fiel retornando a minha igreja. Fé que podemos seguir a ordem natural da vida: nascer, crescer, multiplicar, envelhecer e renascer de novo. Não precisa mais morrer!
Mas vamos deixar de blá, blá, blá e partir para as considerações propriamente ditas:
- A atriz Ivonete Albano merece todas as reverências da classe. É uma grande batalhadora e uma verdadeira operária do fazer teatral. Com coragem, generosidade e responsabilidade conseguiu realizar um sonho antigo da classe artística. Merece palmas e estímulo. Me surpreendi com a força do seu trabalho e a sua dedicação ao teatro potiguar.
- O público estava lá e se fez presente em todas as ocasiões. Faltou só um pouquinho de etiqueta teatral. 1) Ao entrar em um teatro deve-se desligar o celular ou deixá-lo no modo vibratório. 2) Burburinho, cochichado, twittadas e afins atrapalham a vida de qualquer ator e irrita a pessoa da cadeira ao lado. 3) É proibido comer e beber em uma sala de espetáculos. 4) É proibido tirar fotos com flash.
- Não assisti aos espetáculos “Achado não é roubado”, “Meu nome” e “Negrinha”. Portanto não vou comentá-los.
- Também não falarei sobre “Agreste”, “Em cada canto um conto” e “A Farsa do Poder” por não ter assistido os espetáculos na íntegra.
- O primeiro espetáculo completo que eu assisti foi o experimento “Volta ao Ponto”, e o Grupo Janela de Teatro me convenceu de cara! Meninos jovens e talentosos no palco. O grupo soube se cercar de ótimas escolhas para estruturar o seu trabalho. Teatro com o vigor e a beleza juvenil. Sangue novo e puro. Destaque para o trabalho corporal assinado por Rodrigo Silbat. Desejo vida longa ao grupo. Quero assistir tudo que eles fizerem!
- O “Milagre Brasileiro” trouxe uma cutucada na ditadura militar ao palco do Festival. O Coletivo de Teatro Alfenim (PB) revela fortes resoluções cênicas para explorar o tema e constrói uma ponte até o teatro de Sófocles, com Antígona. A ditadura é um assunto não resolvido e sempre recorrente, que mexe com diversas zonas de perigo de nossa história. O espetáculo deu uma chacoalhada nos assuntos que pautam a política brasileira hoje através de uma história que o Brasil prefere esquecer. Um questionamento importante e necessário dentro de um festival de teatro.
- O Coletivo Atores à Deriva está no caminho certo. A história de “Flúvio e o Mar” consegue ser bem contada, a música é divertida, os atores são bons e a mensagem de educação ambiental é latente para o público infantil. O espetáculo estreou dias antes do festival e ainda está em lapidação, gostaria de assisti-lo novamente mais na frente. O meu sobrinho adorou! Uma pergunta: o grupo usou o princípio da reciclagem e do reaproveitamento de materiais em cenários, figurinos e adereços?
- “As Bondosas” trouxe o velório mais divertido do mundo. O trio Angustia, Prudência e Astúcia é o exemplo de como o teatro travestido pode ser engraçado sem ter uma pegada chula. Me espantou saber que o Grupo Focart de Mossoró está apenas na terceira apresentação do espetáculo. Os atores são muito afinados e têm um jogo teatral muito gostoso de se assistir. A peça “As Bondosas” é uma delícia cremosa! E foram muitas gargalhadas!
- O espetáculo experimental “O Bizarro Sonho de Steven” declarou “MORTE AO PÚBLICO!” e tirou a platéia do festival da zona de conforto das poltronas acolchoadas para ser o tema de um teatro rock and roll cheio de surpresas. Somos todos cobaias no experimento do Grupo Facetas, Mutretas e Outras Histórias. E parece mesmo que estamos dentro do sonho de alguém. Nos sonhos apocalíticos do Facetas. O espetáculo não é recomendado para pessoas de mente fechada, cardíacos, eleitores de Rosalba e criancinhas. O Facetas é PEDRADA!
- A “Cia Burlesca de Repertório” me trouxe de volta a dupla João Pinheiro e Alex Ivanovich batendo aquele bolão com o público e com todo o elenco. Praxe! Autêntico teatro de rua potiguar. A dica só fica para o Grupo Artes e Traquinagens investir mais no trabalho vocal para ficar mais bonito ainda. Nota 10 para o cenário e o figurino!
- Os debates entre os grupos e os apreciadores dos espetáculos foram os grandes momentos do festival. O mestre Amir Haddad, o professor Sávio Araújo e o crítico Kil Abreu iluminaram e abriram a mente dos grupos de todos os espetáculos apresentados. Uma assinatura muito importante para cada espetáculo analisado. Feliz de quem não perdeu esta oportunidade.
- O Grupo Estandarte de Teatro não estava em seus melhores dias e desafinou no Festival Agosto de Teatro. O espetáculo “Matrióchka: Uma história dentro da história” é confuso e o jogo cênico não foi estabelecido com a platéia. Acho que ao optar por três mulheres em papéis masculinos, sendo que uma delas é uma mulher vestida de homem, o espetáculo perdeu o nexo. E caso o grupo resolva continuar cantando no palco deve desenvolver um estudo vocal de canto. Os atores também não usaram o seu potencial máximo de expressão corporal e facial. A atriz Marinalva Moura é muito boa!
- O Grupo Estandarte está prestes a completar 25 anos de existência. Sonho com um Estandarte retornando às suas origens. Tenho saudades do Estandarte que invadia as ruas de Natal com espetáculos memoráveis como “Oropa, França e Bahia” e “Dom Chicote Mula Manca”, que nunca saíram do meu pensamento. Mas acho melhor esquecer a apresentação que eu assisti no Agosto de Teatro e esperar o próximo espetáculo do Estandarte.
- Ainda estou digerindo “Pai & Filho”. O espetáculo do Maranhão é bom mas não se resolve em cena. Baseado na “Carta ao Pai”, de Kafka, o conflito entre pai e filho cheira a incesto mas acaba aí. Apesar da monotonia de alguns momentos, a Pequena Companhia de Teatro arrasa pelo trabalho corporal dos atores e pela condução de Marcelo Flecha. Linguagem inteligente e interessante!
- Uma pergunta: Por que ator tem fetiche com baú?
- Os dois momentos mais impressionantes do Festival têm algo em comum. “O Pulo do Gato”, do Pessoal do Tarará e “Esparrela”, do Grupo Bigorna de Teatro, trazem pessoas assumindo o papel de bichos, para falar de humanos. Trabalhos surpreendentes e de recursos mínimos, toda a força do espetáculo vem da energia dos atores com ausência total de maquiagem, figurino, adereços e cenário.
- Fiquei boquiaberto com o espetáculo “O Pulo do Gato”, o Pessoal do Tarará tem em mãos um espetáculo universal. A ausência de texto dá ao grupo imensas possibilidades. Cheguei a ter medo dos cães do espetáculo. Ficava repetindo “é tudo mentira!”, “é tudo teatro!”, “é tudo brincadeira!”, para uma criança de 2 anos e meio que assistia tranquilamente a apresentação ao meu lado. Eu estava com mais medo do que ela! Medo de ser mordido pelos atores do Tarará. O trabalho corporal de Rodrigo Silbat também é impressionante e responsável pelo meu pavor daqueles cães raivosos. Perdi o fôlego!
- Já o “Esparrela” me deixou apaixonado por um urubu. O mundo que Fernando Teixeira cria nos contando a história de um homem que capturou um urubu para adquirir moral e dinheiro é acolhedor. O forte expressão do ator me fez conseguir enxergar a asa quebrada do urubu, a panela quente queimando os seus pés e o carinho que nasceu na relação entre o urubu e seu dono. A platéia do Agosto de Teatro veio a baixo!
- Rodrigo Silbat foi o grande destaque do Festival. O seu trabalho ficou evidenciado nos bem sucedidos “Volta ao Ponto” e “O Pulo do Gato”. E num festival que mostrou a fragilidade corporal de alguns grupos, Rodrigo Silbat fez a diferença! Parabéns!
- Por fim, “Ultrage” é um prato cheio para quem gosta de boas gargalhadas teatrais. Márcia, Ramona, Adriana e Cia Elas são muito engraçadas. Acho que os números musicais da cena da paquita deviam ser mais ágeis. No mais é só maturar esse comicidade do grupo.
- Gostaria de ouvir outras opiniões sobre o Festival Agosto de Teatro.
- Peço a Deus e a Rosalba que o Festival Agosto de Teatro tenha continuidade. Precisamos desse respaldo para o fazer teatral do Rio Grande do Norte. E espero que o projeto se mantenha nas mãos de Ivonete Albano.
Comentário lúcido.
ResponderExcluirÓtimo texto.
Parabéns!
Eu acho que não foi o melhor festival do mundo (sobretudo pelo que aconteceu antes dele começar, com o impeçilho de que alguns espetáculos se inscrevessem), mas o Agosto evoluiu muito do ano passado pra cá. Isso foi o que mais deu gosto de ver. A vinda de mais peças de fora foi um grande acerto. Eu espero que o Festival dê o gás para que o próprio teatro natalense evolua.
ResponderExcluirAmorim li tudo, muito bom ter vc como jornalista comentando sobre teatro, de forma livre e despretenciosa. Parabéns. Senti por vc o gostinho do festival que infelizmente não pude participar. Sei que perdi um evento maravilhoso na cidade, que eu boto fé e acredito. Assino em baixo de tudo que vc falou sobe Ivonete Albano, ela é o máximo, mulher incrível.
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